terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Sobre artesania e inspiração

      Sempre me entendi como um escritor-artesão. 
     O filósofo Dufrenne distingue o processo de escrita em duas possibilidades, tendo por base a concepção do escritor sobre o seu próprio ato de escrever. Ele fala em poeta-artesão e poeta-inspirado. 
     O inspirado é aquele que acredita que a escrita se dá no próprio ato de escrever, ou seja, para tal escritor, não há a necessidade de planejamento; os personagens e a trama vão se construindo conforme as ideias vão se apresentando. Assim, quando o escritor escreve, ele não está preocupado com nada além da própria ação do escrever. Meu professor (e depois meu amigo e colega na FAPA) Lauri Maciel, contista e romancista, quando conversávamos sobre o processo de produção literária, sempre me dizia que, ao iniciar um texto, tinha uma ideia muito vaga (às vezes nenhuma ideia) sobre a história que iria escrever. Era, pois, um escritor inspirado. Já ouvi (e muitas vezes duvidei deles) escritores dizendo que seus personagens ganham vida à revelia do destino que foi traçado para eles. "Meus personagens, por vezes, me surpreendem", afirmam alguns escritores. Eu, confesso, sempre achei muito estranha tal postura. Me perguntava: Como pode um personagem decidir seus caminhos, se ele é uma criação do autor? O autor deve ser o domador, deve conduzir seu personagem para aquele fim que lhe é destinado. Afinal, sempre me entendi como um escritor-artesão.
       O artesão é aquele, na tradição de um Flaubert, que busca planejar sua escrita. A ideia vem (não curto a palavra inspiração) e o escritor irá testar as possibilidades daquele conflito, organizando-o racionalmente, definindo personagens, peripécias, desfecho. Aí, sim, após tudo previamente acertado, iniciará a escrita, conduzindo seus personagens ao destino que lhes foi traçado pela razão do escritor, a fim de provocar no leitor o efeito que determinou, na concepção do texto, que o leitor experimentaria. Eu me filio (ou filiava) a tal vertente. Fiz oficina literária com o Luiz Antonio de Assis Brasil e sempre admirei sua capacidade de pesquisa exploratória de um tema e de um personagem, preocupando-se não apenas com "o que contar", mas sobretudo com "o como contar".
      Minha escrita sempre buscou isso: ter um tanto de racionalidade nas escolhas, elaborar um planejamento, um "esqueleto", como costumo dizer, que será enchido de carnes no processo da escrita. Carnes necessárias para que o esqueleto, aquele previamente pensado, adquira sua forma definitiva. E aí a escrita e a reescrita (quantas vezes forem necessárias) se farão presentes.
      Mas, como disse no início destas breves reflexões, sempre me entendi como um escritor-artesão. Sempre. Até o momento em que li o livro do Stephen King, "Sobre a escrita". Nele o escritor fala que parte de uma situação e o restante se faz no próprio ato de se fazer. Sem planejamento, sem outras intenções que não apenas contar uma história. Achei bastante desafiador, bastante questionável, sobretudo ao ler alguns títulos do autor, tais como "Carrie, a estranha" e "Misery". Não consigo ver neles tramas nascidas ao acaso, sem o burilamento necessário para que o texto feche e provoque em mim o que eles provocaram.
       O fato é que, no dia 1º de janeiro, enveredei, motivado pela leitura de "Palácio da Lua", de Paul Auster, que me sugeriu um personagem, a escrever um livro juvenil sem qualquer planejamento. Pouco sabia eu do Francisco, apenas seu drama principal, seu conflito maior. Pois comecei a escrever, de forma manuscrita (estava na praia e quando viajo não levo note: acho pesado, dependente de tomadas e etc), sem saber ao certo quem era meu protagonista e o que ele revelaria a mim durante o ato da escrita. O texto agora se aproxima do fim. E é meu primeiro romance totalmente escrito de forma manuscrita. Páginas e páginas, papel e caneta, eu dando voz ao Francisco, ao mesmo tempo que vou conhecendo-o, entendendo-o, percebendo suas dores e seu modo de enfrentá-las. Experiência diferente, ímpar, inusitada. Não sei se melhor ou pior do que o modo como sempre me debrucei sobre meus textos anteriores. Não sei. Só sei que o Francisco está presente, não sai de mim. Não sai, não sai, não sai.
       E tem sido bom.



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