sábado, 8 de outubro de 2016

Discurso de posse na Academia Rio-Grandense de Letras

Meus escreveres
(Discurso de posse na Academia Rio-Grandense de Letras)
Caio Riter, escritor

No princípio, era o verbo. Mas não só.
A palavra é vital. Sem ela, não nos construímos como seres históricos, não nos percebemos gente. Por meio da nominação, é que a concretude se faz; por meio da verbalização, é que nos tornamos senhores de nós mesmos; por meio da escrita, é que buscamos formas para entender o mundo, o outro e nós mesmos.
Escrevo por que as palavras me são caras. Escrevo porque em minha pré-história de leitor tive uma mãe que contava histórias, que brincava com as palavras, por meio de adivinhas, de travalínguas, de canções, e que me alfabetizou na necessidade de apreender o mundo tendo as palavras como arma, como recurso.
Escrevo por sentir o verbo pulsando e pulsante em mim, no entendimento de que as palavras são mais do que apenas conteúdo semântico: são ritmo, são som, são ludus, são possibilidade de fantasia e de imaginário, são registro de memória, são construção imagética.
Escrevo porque creio (embora haja discursos contrários a este meu pensamento) que a palavra compromete: ela nos insere na vida e nos obriga a ter lado, a tomar partido, a construir uma realidade outra à medida em que a ficção (ou a poesia) volta seu olhar sobre o ontem, sobre o hoje, e futura amanhãs. O escritor é um ser do seu tempo. E ao versar sobre sua aldeia, versará sobre questões existenciais que se curvam sobre o próprio ato de saber-se humano. O escritor é ser de pontes. Se não se sabe bom engenheiro na construção de caminhos sobre os abismos que separam autor e leitor, individual e coletivo, não será efetivamente um ser de palavras.
E é isso o que busco. Ser escritor, fazer parte do mundo em que vivo, ser ponte ao encontro de mais e mais corações leitores.
Todavia, quando me pensei ser de escrita, houve premeditações, mas também acidentes. Acidentes daqueles bons, as tais surpresas que o próprio ato da escrita promove. Ou a vida, talvez. O fato é que minha escrita acabou por se voltar, com maior propriedade, aos leitores iniciantes: crianças e jovens. Uma produção que, muitas vezes, é vista como menor, como fácil ou facilitadora. Produção, no entanto, extremamente necessária quando se pensa que atua sobre leitores primeiros. Leitores que, por experiência própria, são mais verdadeiros no seu sentir. Assim, fui colhendo emoções, fui estabelecendo laços, fui me construindo como escritor. Isso tudo, mergulhado no universo mágico do “Era uma vez...” e sempre construindo a certeza de que escrever desconhece rótulos. O bom livro para crianças, já apregoou Orígenes Lessa, é aquele que é lido por adultos com prazer. Ou ainda, como disse Drummond, “O gênero literatura infantil tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá música infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma obra literária deixa de constituir alimento para o espírito da criança ou do jovem e se dirige ao espirito adulto? Qual o bom livro para crianças que não seja lido com interesse pelo homem feito? Observados alguns cuidados de linguagem e de decência, a distinção preconceituosa se desfaz” O poeta, que assim como outros cânones da literatura brasileira, também arquitetou palavras, também criou mundos, com o objetivo de conquistar corações infantis.
O escritor que tece universos para a infância ou para a adolescência também conversa com o coração da humanidade, independente de idade ou de outra qualquer limitação.
A trajetória de um escritor é feita de opções e de acidentes, as tais inesperanças de que eu falava antes: algo ocorre sem que seja premeditado. Eu mesmo desejando ser escritor para adultos, tornando-me autor para a infância e para a adolescência.
Mas nem só.
E, hoje, minha história é acrescida por mais um degrau, por mais um episódio, torno-me acadêmico desta centenária instituição, que, com certeza, tantos era uma vez... teve e tantos outros terá, espero que com minha participação. Ser acolhido para ocupar a cadeira de número 4, cujo patrono é Gaspar Silveira Martins, é motivo de alegria para mim.
Era uma vez um garoto, chamado Gaspar, natural de Cerro Largo, que, ao entrar na escola e ser inquirido por seu professor sobre o que gostaria de ser quando crescesse, respondeu assim: “Ministro de Estado”. E o foi. Aos 44 anos. Possuidor de uma imensa capacidade oratória, construiu sua trajetória política, produzindo discursos inflamados e tornando-se deputado, senador, sendo ainda, além de ministro, presidente da província do Rio Grande do Sul em 1889. Homem de visão política, pessoa preocupada com certos comportamentos discriminatórios, demitiu-se, em 1873, do Ministério da Fazenda, por não aceitar um projeto do governo que não concedia o direito ao voto para pessoas não católicas.
Excelente contador de histórias, era comum Gaspar Silveira Martins reunir plateia à sua volta no contar de causos gaúchos, além das suas próprias histórias de infância, recolhidas na memória de um tempo em que ainda usava calças curtas e galopava livre pelo campo. Dizem que as narrava com ímpeto, com verve de contador, usando os recursos naturais de voz e gestos.
Conta Lafaiete Pereira, que quando criança ouvia as histórias de Gaspar, que "Silveira Martins não contava essas histórias só para mim, contava-as para a gente grande, mas em tal linguagem, com tal poder descritivo, que não eram só as crianças, mas até os criados que paravam o serviço para ouvi-lo". Percebe-se, então, que o patrono da cadeira 4 era homem de grande ações políticas, de fortes discursos, ora republicanos, ora monarquistas, mas também era pessoa de palavra contada, de histórias de boca, que não tinha outra finalidade a não ser encantar a plateia. Descobrir esta nuance do patrono da cadeira que passo a ocupar foi maior encanto no estudo da história e da trajetória de Silveira Martins, que faleceu em 1901, aos 66 anos, no Uruguai, país no qual se exilou após abandonar a vida política.
Percebemos, pois, que palavra constrói universos outros; é ela que nos revela o distinto, é ela que nos permite perceber o altero. Assim, o leitor, por meio dos universos ficcionais, tem a possibilidade de entender o outro, de se solidarizar com o outro. Palavra como condição para a comunhão. Palavra como escrita e como dom da oratória. Palavra como aproximação.
Era uma vez também outro gaúcho, nascido em Bagé, em 1924.
Jovem ainda, Paulo acompanhava pelo Jornal do Comércio os discursos dos parlamentares e os pareceres das comissões. Assim foi se envolvendo com aquilo que se tornaria sua própria vida: a política. Jurista, político e advogado, Paulo Brossard ocupou também, até 2015, ano de sua morte, a cadeira 4 desta Academia.
Paulo Brossard desempenhou várias atividades no cenário político, e foi voz contundente e atuante nos anos de chumbo do governo de exceção. Em 1974, elegeu-se senador pelo Rio Grande do Sul, catalisando o sentimento de oposição ao regime então instaurado. Sua fala era forte, incisiva na defesa da cidadania. Nesta disputa com Nestor Jost, candidato do governo, recebeu o apoio de Erico Verissimo, de Chico Buarque e até mesmo do PC do B.
Embora em 1964 estivesse alinhado com aqueles que tomaram o poder, Brossard, com o passar do tempo, tornou-se um crítico das iniquidades perpetradas pelo governo. Dizia que, se estava ali, no Senado, tinha o dever de falar, pois havia milhões de pessoas que não estavam lá e, portanto, não tinham voz. É sabido que a força das palavras do senador gaúcho e sua verve inflamada eram motivo de temor para os governantes. Seus discursos, na linha ciceriana, viraram séries, tais como “É hora de mudar”, que vilipendiou o pacote de medidas propostas pelo governo Geisel, e “Ainda é tempo”, que cobrava pressa na reabertura democrática.
Brossard ainda foi Ministro de Estado, assim como Silveira Martins, sendo, após, indicado para o Supremo Tribunal Federal, onde assumiu a presidência em 1992, aposentando-se da vida política em 1996. Todavia, mesmo nos bastidores, sua palavra fez-se ouvir até seus últimos momentos de vida: um contundente crítico do sistema político nacional, afirmando que a República foi um acidente orquestrado por uma minoria, a fim de se manter no poder. Nada muito díspar do que vivemos hoje.
Experimentamos tempos difíceis como os enfrentados por Paulo Brossard e por tantos brasileiros que lutaram por um Brasil mais pleno, mais livre, mais humano e democrático. Uma instituição que traz em sua história nomes como o de Gaspar Silveira Martins e o de Paulo Brossard precisa, pois, inserir-se também nas discussões a liberdade e a cidadania são ameaçadas. Nós, como artistas, como homens e mulheres da palavra, não podemos, assim como os parnasianos, nos isolarmos em castelos de cristais. O cristal é nobre, mas frágil. Quebra.
A vida pede a palavra; a sociedade carece da palavra.
Quando calamos, somos menos; quando calamos, abrirmos mão do papel social da Arte. E não defendo aqui uma arte engajada partidariamente, mas sim ideologicamente. Não se é, se não se tem consciência de que, ao articularmos o verbo, instituímos novas realidades, novas possibilidade de existir.
A palavra conta, narra, diz de nós e de nosso lugar no mundo.
Falemos.
Escrevamos, pois, a fim de que outros leiam.
Só um novo ser humano — e a construção deste novo ser, tenho certeza, passa pela leitura — poderá construir uma nova sociedade, em que a palavra cidadão seja reinventada e recheada de seu sentido primeiro.
            No meu entendimento, torna-se cidadão aquele que possui a capacidade de entender-se e de entender o outro. E, para que isso ocorra, passar pela experiência que a leitura promove é de fundamental importância.
Ler, nessa dimensão, é existir de fato, é tornar-se uno, é construir-se como ser de vontade, de desejo e de sonho. Afinal, ao lermos nos tornamos outro e, de fato, após uma boa leitura, não somos mais os mesmos, não tem como sermos. Mesmo que não nos demos conta, aquelas palavras, em seus arranjos estéticos, promoveram em nós uma mudança, um progresso. Somos outros, não mais os mesmos que abrimos a primeira página do livro. Estes que agora as fecham se modificaram.
E para melhor.
Por isso, escrevo.




quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Fábula: O Morcego e a Coruja

O Morcego e a Coruja

O Morcego andava descontente. Outrora, ele podia voar pela floresta tranquilamente, gozando de todas as benesses que aqueles que comungam do poder possuem. O morcego era amigo do rei. E assim sendo podia sugar o sangue de quem bem lhe apetecesse. 

Todavia, após disputa acirrada com o Leão, o sempre eterno rei da floresta, que perdeu o posto, pois o povo andava descontente de apenas os bichos mais fortes e poderosos terem regalias e direitos, a Coruja assumiu o trono. E, nem bem, pegou o cetro, decidiu que direitos deveriam ser divididos, assim como deveres. É claro que alguns bichos grandes concordaram, viram naquela postura uma forma de construírem novas relações na floresta. Agora, todos poderiam ter possibilidades semelhantes para desfrutarem de direitos semelhantes, como, por exemplo, beber a água límpida na fonte do rio e não apenas a poluída.
Mas o Morcego, ah, o Morcego, andava descontente. Uniu-se, então, a outros tantos morcegos e a serpentes, a escavarelhos, a escorpiões e aranhas. Não era justo dividir o que sempre fora deles. E, munidos de gritos de ódio, invadiram os caminhos da floresta. Urravam, berravam, zombavam da Coruja e de todos os outros que a apoiavam. Queriam o fim daquela forma de governar. Porém, ardilosamente, diziam defender a liberdade de todos, mentiam vestir as cores da esperança. Diziam que a Coruja impedia a ordem outrora tão tranquila, melhor que abandonasse o poder, que o ideal era que o Morcego reinasse.
E alguns bichos tolos começaram a seguir os manifestantes. Todos esquecidos daquele tempo em que o Leão governava. Alguns inclusive, em meio à balbúrdia, nem percebiam que gritavam contra direitos que outrora nunca haviam tido.
E foi assim que o ardiloso Morcego retomou o poder. Para infelicidade de toda a floresta.
Moral da História 1: O passado jamais pode ser esquecido.

Moral da História 2: Quem segue serpentes corre o risco de morrer envenenado.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Palito e releituras

Hoje, mais uma vez, recebi e-mail de uma professora que anda à cata de meu primeiro livro publicado: "O palito diferente". Livro já em extinção, eu mesmo só fiquei com um exemplar. Ele não foi editado novamente e, embora de tempos em tempos o procure na rede, nada encontro. 
Bacana isso de um livro construir fascínios nos leitores. Para quem o curte, fiz uma nova versão, publicada pela Paulinas com o título de "Um reino todo quadrado". Basicamente a mesma história, apenas o final é díspar e os elementos simbólicos também. 
Mas, mesmo assim, leitores querem "O Palito". 
Coisa estranha, e mágica, coisa sem resposta, só mesmo o encanto que alguns textos causam na gente e que a gente não consegue explicar. Ou consegue. Sei lá. 
Como leitor também sou meio assim: alguns livros me tomam e quero tê-los para, quem sabe, um dia, no intervalo entre tantos livros novos que me gritam da estante para serem lidos, eu possa relê-lo. Há livros que merecem isso: releitura.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Abertas Inscrições para Oficina Literária

Estão abertas as inscrições para Oficina de Criação Literária de Narrativa Curta com o escritor Caio Riter. A tradicional oficina ministrada com apoio do SintrajufeRS abre inscrições para dez participantes. Os encontros ocorrerão nas segundas-feiras , das 19h30 às 21h30, na sede do Sindicato, no bairro Menino Deus. Os participantes da oficina, no final do curso, têm direito a publicar seus contos na antologia organizado pelo coordenador e editado pelo SintrajufeRS, com lançamento previsto para a Feira do Livro de Porto Alegre.
Maiores informações no site do Sintrajufe ou pelo fone 32351977 - sec. Cultura.

De volta.

O tempo é mesmo o único senhor do tempo.
Quando nos damos conta, ele já, qual Chronos com seus filhos, nos devorou por inteiro. Aí vem a lembrança de uma prática outrora tão comum que acabou, sabe-se lá por quais motivos, por quais demandas, nos tornamos seres de outras vontades.
Com o mundo virtual, a situação apenas se potencializa. 
Ainda mais para alguém que queira ter um blog. Blogs carecem de novidades, exigem que nós o coloquemos como prioridade, caso contrário ele fica parecendo lápide em cemitério abandonado.
Alguém o acessa e percebe que há muito o seu autor não traçou nenhuma palavra em suas estradas. Foi o que ocorreu comigo. 
Acesso meu blog e o que vejo é uma data de inícios de ano (talvez eu, na ocasião, tivesse, como agora, o desejo de ser escrita de forma mais regular). Então, surge o desejo de fazer-me palavras. E me faço.

Todavia.
Todavia, não sem antes me fazer desculpas pelo tanto de silêncio. O Face me tomando mais. Enfim.
Verto-me escrita por aqui. Que este blog possa dar conta também de mim. De um Caio que não se revela no Face, que aqui buscará dar conta se seus pensamentos, de suas ações literárias. 
Um novo recomeço se impõe.

domingo, 3 de janeiro de 2016

Pessoas e traduções

As pessoas:
2015 foi-se. Muito trouxe de polêmica que aproximou-me de tantas pessoas, que confirmou olhares semelhantes, mas que também abriu olhos sobre pessoas que pensam a vida sob uma ótica díspar da minha. Difícil este dar-se conta, afinal todo o relacionamento, pelo menos para mim, se estrutura na base do afeto e da confiança. Assim, quando alguém revela a verdadeira face, quando alguma máscara cai, impossível que a relação não se estremeça ou acabe. Fidelidade é palavra necessária, creio, para que algo consistente se construa. E há pessoas que não sabem ser fieis ao outro. Somente a si. Seu interesse particular fica acima de qualquer outro e ela se alia a quem quer que seja, desde que tenha seu desejo satisfeito. O bom mesmo são os afetos construídos sobre bases sólidas: fidelidade, carinho, sinceridade, parceria. Aqueles relacionamentos em que o que importa é o outro, ou o nós. Jamais o eu. Estes são para serem alimentados, nutridos com mais e mais carinhos. Os outros, como já disse o poeta, "eles passarão".

As traduções:
Traduzir o outro na gente é condição para a amizade. Verter-se em outro idioma é condição para que as palavras cheguem a mais e mais leitores. Pois este ano foi bom: meu livro "Sete Patinhos na Lagoa" foi traduzido para três idiomas: francês, coreano e japonês. E meu livro "O rapaz que não era de Liverpool" foi vertido para o sérvio. 
Quando sonhei ser escritor, não pensei tais possibilidades. Queria, claro, que meus livros pudessem atingir o maior número de pessoas possível. E que eles pudessem ser ponte entre mim e meus leitores. E que eles pudessem suscitar sonhos, desejos, desacomodamentos. E que pudessem fazer de mim um escritor respeitado, reconhecido pelos meus leitores. E sempre que pensei isso meu pensamento voltava-se para o imenso território nacional. Queria ultrapassar a fronteira do Mampituba. Hoje, minhas histórias, duas delas, já ultrapassaram a barreira da língua. E sou feliz.