Lygia: a jardineira
das palavras.
Espero que fique alguma coisa - Lygia Fagundes Telles
Para aquele que aprecia
mergulhar em universos ficcionais, sem dúvida a descoberta de um grande livro
ou de um grande autor é como labor de jardineiro, que vai jogando sementes
sobre terra fértil, regando-as com esmero, ansioso por ver o broto rebentar a
terra, mas sempre na expectativa de qual o presente que recolherá. Os botões
são sempre surpresas, promessas de imagens únicas. Cada flor é, e sempre será,
flor singular, por mais que possa desaparecer no todo do jardim.
Penso
em jardins, em flores, — mesmo correndo o risco do clichê — quando penso nas
palavras. Estas, como aqueles, são sempre surpresas. Abrir um livro é estender
uma ponte entre aquele que lê e aquele que deixou brotar no papel seus mundos
inventados.
Penso
em botões, em flores, sempre que penetro no universo de Lygia Fagundes Telles.
E
que universo:
Um gato
que já viveu várias vidas, agnóstico e com memória; uma jovem que se encontra
consigo mesma num universo onírico; um esqueleto de anão que se vai
reconstruindo com o auxílio de um préstito de formigas; autoridades reunidas em
um seminário cujo objetivo é destruir os ratos ou, quem sabe, um milagre em
noite de Natal sobre uma barca que atravessa um rio. Todas situações de forte
apelo emotivo e estético, todas flores construídas pela mesma jardineira das
palavras: Lygia Fagundes Telles, que, no mês de maio, recebeu o prêmio Camões,
o mais importante prêmio literário de língua portuguesa. A Lygia de contos e
romances. A Lygia de vários prêmios literários, no Brasil e no exterior. A
Lygia cujo texto mergulha nas profundezas do eu. A Lygia que apela ao
fantástico.
Herança,
segundo a própria autora, do hábito de ouvir histórias que lhe eram narradas
por uma pajem. Todas narrativas que envolviam mortos-vivos, lobisomens e tantas
outras criaturas do além. “Pois bem: eu comecei contando para as outras
crianças as histórias que ouvia. Mas sempre mudava um pouco o que tinha
escutado”, diz Lygia.. Depois, passou a inventar suas próprias histórias. E
percebeu que, ao contá-las, o temor desaparecia. Ela agora era a senhora da
palavra. Concedia às personagens o destino que queria. E não era incomum mudar,
de uma contação para outra, algum detalhe. Ao que a platéia protestava: “Não
era assim! A caveira tinha outro nome!”. Isto, antes mesmo de aprender a
escrever. Quem sabe nestas cenas infantis a semente que geraria a plantadora de
histórias outras.
Estreando
na literatura em 1938, com o livro de contos Porão e Sobrado, financiado pelo próprio pai e hoje considerado
pela autora como “contos ginasianos”, Lygia, a cada livro publicado, foi
firmando seu nome como um dos mais importantes da literatura contemporânea.
Autora de quatro romances (Ciranda de Pedra,
de 1954, Verão no Aquário, de 1963, As Meninas,
de 1973, e As Horas Nuas, de 1989) e de
diversos livros de contos, sendo o conto Pomba
enamorada considerado por José Saramago como “uma verdadeira obra-prima”.
Lygia, em 2000, nos entregou Invenção e
Memória, livro de contos que, numa linguagem sem excessos, funde reflexões
pessoais, experiências de vida e ficção. O que é verdade e o que é invenção
nestes relatos, a própria autora, em entrevistas, diz não saber. Foi coletando
pedaços de memórias e reconstruindo-as num jogo sedutor, em que as fronteiras
do real são invadidas pelo fantástico. Assim, seu universo memorialístico nos
brinda com contos, como Potyra, em
que, através do olhar de um vampiro, o processo de colonização brasileiro é
posto em xeque, ou como A chave na porta,
em que o sobrenatural funde presente e passado, ou ainda, com A dança com o Anjo, em que o
sobrenatural mergulha a protagonista (ou a autora) numa atmosfera redentora.
Arquiteta da palavra, artífice
na construção de mundos ficcionais, Lygia Fagundes Telles mostra-se, muitas
vezes, insatisfeita com seu labor e, sempre que republica seus contos, lança
novo olhar sobre eles, buscando a palavra perfeita, a fim de que o efeito seja,
ainda mais, concentrado: jardineira em
seu labor de poda. Um de seus contos mais vezes publicado é Venha ver o pôr-do-sol, em que duas de
suas temáticas, o amor e a morte, são abordadas, com maestria, conduzindo o
leitor a um desfecho surpreendente, em que se percebe forte intertextualidade
com a narrativa de Edgar Allan Poe. Aliás, em 2004, Lygia apresentou Meus contos preferidos, e, em 2005,
lançou Meus contos esquecidos,
antologias em que apresenta, mais uma vez, suas escolhas em relação à própria
produção contística, numa espécie de balanço ou de testamento literário.
Mergulhar em seus mundos
ficcionais é certeza de enredamento, é certeza de encontro com o inusitado, é
certeza de colher flor singular no jardim da Literatura. O fantástico, conforme
Fábio Lucas, transcorre “como se os fantasmas aparecessem para corrigir a
realidade que não conduz ao prazer”. Surge para oferecer uma possibilidade de
encontro, já que a solidão e uma intensa sensação de inadequação espacial e
emocional abatem-se sobre as personagens lygianas, que sofrem e se angustiam,
vítimas de situações desencontradas. Estão perdidas, soltas, sem pai nem mãe,
imersas numa realidade que lhes é hostil, como, por exemplo, nota-se no romance
As Horas Nuas: Rosa Ambrósio, atriz
decadente, lutando para manter-se íntegra, quando tudo ao seu redor se esboroa.
Em 2002, com organização de
Suênio Campos de Lucena, A Rocco publicou Durante
aquele estranho chá, cujo subtítulo Perdidos
e Achados fornece breve idéia do que vai pelas páginas. São crônicas,
retalhos de memórias ou fragmentos publicados em jornais e revistas, ou
inéditos, em que Lygia Fagundes Telles, pelo viés do sensível, traça rico
painel da vida literária brasileira, referindo suas andanças pelo Brasil para
falar de Literatura, bem como as afinidades e contatos com vários autores, dentre
eles Monteiro Lobato, Hilda Hist e Oswald de Andrade. O mais tocante, talvez,
seja a crônica que inaugura o volume, Onde
estiveste de noite?, em que a autora, na noite da morte de Clarice
Lispector, recebe a visita de uma andorinha perdida. Presságio da libertação da
amiga.
Sobre o prêmio Camões, disse
estar tão desligada de tudo, tão envolvida com suas coisas, que nem sabia. “Mas
recebi com muita emoção, porque indica que uma escritora do Terceiro Mundo está
transpondo barreiras”. Postura de preocupação mais com a escrita do que com a
celebridade, a mesma demonstrada ao completar 90 anos. Não fez grandes
comemorações. Preferiu celebrar os 40 anos de publicação do romance As Meninas, em que, através do retrato
de três jovens, desnuda de forma crítica e sem condescendências um terrível
momento brasileiro: a ditadura militar. Lygia não quer mais nada a não ser
“cumprir seu ofício com seriedade e paixão”. Não teme a velhice nem a morte. Se
há um medo é o do encontro com certas doenças, as quais ela denomina de
“humilhantes”. Classificada por Ignácio de Loyola Brandão como “uma pessoa
adorável”, de fato a escritora é um exemplo de simpatia e serenidade, como
demonstrou em sua passagem por Porto Alegre, em 1999, por ocasião da feira do
Livro. Membro da Academia Brasileira de Letras, prestes a lançar um livro
infantil Eu, o gato, animal sempre
presente em suas narrativas, Lygia revela ainda ter muitas cartas na manga. Em
recente entrevista, disse estar às voltas com um novo romance. Nós, leitores,
agradecemos. Só nos resta entoar um parabéns pelo prêmio e desejar que Lygia
faça cem anos. Ou mais. Afinal, muitas flores ainda querem ser plantadas.