quarta-feira, 7 de agosto de 2019

25 anos de escritor: algumas palavras


           Escrever é alimentar afetos.

         Há os que dizem, e não lhes tiro a razão, que a escrita é ato solitário. Eu, todavia, prefiro vê-la como ato solidário. Quando penso uma história ou um poema, penso em mim, é claro, penso em que medida minha escrita possa contribuir com a expressão do meu eu, dos sentimentos que tais palavras me permitem viver (ou reviver). Quando escrevo, falo de mim. Mas também quero falar com o outro. Sem leitor, a literatura não cumpre seu papel maior: o de ser ponte.

         
          Escrever é estender pontes.
         Pontes para o dentro. Pontes para o fora. Pontes, sobretudo, que sejam elo entre duas ou mais margens, entre mais e mais pessoas.
         Meu ponto de partida foi uma família humilde. E se digo isso não é para exaltar-me como alguém que superou sua condição, nem para me pôr numa condição menor, digo-o apenas por ser fato e para tentar entender o porquê de o Caio, criança sem livros, hoje ser o Caio, escritor, que olha para trás e percebe o quanto a leitura fez diferença em sua trajetória. Se eu não tivesse lido, se não tivesse enveredado pelas bibliotecas públicas atrás de possibilidades diferentes de ser gente, de sentir, não estaria agora aqui, celebrando com vocês (e isso é bom de viver) estes 25 anos de escrita.
         Escrever é provocar acidentes.
         A vida é mesmo uma sucessão de acidentes. Há os bons, há os menos bons. E eu me torno escritor por vontade (fiz Jornalismo, com esta intenção; fiz Oficina Literária também), todavia tornar-me escritor para a infância e para a adolescência foi acidente daqueles bons: a nossa primeira gravidez abrindo espaço para presente inusitado, único: um livro infantil para presentear a mulher que havia aceito meu convite para gerarmos uma nova vida. Assim, nasceu meu primeiro livro para a infância. Na verdade, um livro para uma única criança. Dei-lhe o nome de O fruto verde e até hoje mantenho a promessa. Livro único.
         Fiz outros livros artesanais, até que um outro acidente fez com que meu primeiro livro fosse publicado. Isso lá em 1994. A continuação desta história longa, muitos de vocês acompanharam. E quando vejo tanta gente bacana, tanta gente que veio aqui hoje celebrar comigo esta parte de minha história, só posso ser feliz e plagiar o Saramago: “Caio, vales alguma coisa”.
        Escrever é permitir que as palavras morem em mim.
        Eu me faço moradia delas, procuro dar-lhes guarida, aconchego em mim. Gosto das palavras, me encanto com elas, embora saiba que, por vezes, elas são pouco obedientes, são insubmissas, revolucionárias, o que acredito venha de sua própria condição feminina. Cada encontro com as palavras é sempre um convite para novas histórias, novos textos, novos poemas. Me deixo fecundar por ela, e espero que isso possa seguir acontecendo mais e mais e mais e mais.



domingo, 28 de julho de 2019

Sobre timidez.

          Sempre fui tímido. Desde criança. 
          Lembro que na escola para mim sempre foi uma espécie de tortura ter que ler algum texto em voz alta, ter que ir à frente da classe apresentar algum trabalho, ter que ler respostas de alguma tarefa extraclasse. Tudo isso sempre foi muito sofrido, sofrido demais. 
Quando adolescente, eu até respirava fundo e, atormentado pela timidez mas apoiado pelos colegas que se posicionavam ao meu lado (ter alguém por perto sempre nos fortalece, sobretudo se este alguém passa por algo semelhante ao que estamos passando. Jovens são assim: têm essa capacidade de tornar forte o fraco), ia à luta, executava a tarefa. Todavia, se eu pudesse me escapar dela, me escapava. É estranho olhar para esse guri que fui e tentar descobrir que medos me impediam de ir à frente, já que eu dominava o conteúdo, já que - na maioria das vezes - tinha feito quase sozinho o trabalho? 
           Adolescer é território de medos, também.
          E muitas vezes o universo que habitamos (o colégio, a casa, os problemas familiares: tantos, muitos) nos impede de encarar de frente estes medos. Assim, vamos lidando de forma amadora com eles. E isso não é bom: atordoa, inibe, segura nossos desejos, nossas capacidades. É certo que podemos ser mais felizes se tivermos a coragem de dar o primeiro passo em direção àquilo que nos amedronta.
          Timidez ou medo. Medo ou timidez. Os dois, talvez. 
          Hoje, quando olho para o Caio que fui, percebo o tanto de tristeza estampada nas poucas fotos daquela época, percebo a tristeza também cercando as minhas lembranças de um tempo que existe apenas para nos trazer surpresas.
          Até publiquei, há um tempo atrás, a história do Alexandre, um guri que se encontra no leito de um hospital aguardando a manhã em que fará um transplante de medula. Alexandre tem leucemia. E tem amigos, dois parceiros bem legais, que o enchem de afeto. Alexandre é adolescente. Ele sabe que a adolescência é um Tempo de Surpresas. E elas nem sempre são boas. 


O tempo das surpresas, SM Edições.


terça-feira, 23 de julho de 2019

O livro e o lápis

         Quando leio um livro (no momento ando tomado pela dor da "Carta à Rainha Louca", de Maria Valéria Rezende), não resisto à tentação de fazer comentários à margem ou de destacar, com sublinhados, trechos que me chamem a atenção, quer pelo conteúdo, quer pelas construções estéticas, quer por mexer com alguma coisa em mim. Deixo minhas marcas naquilo que leio; não vejo as páginas de um livro, como fazem alguns, como um templo no qual entramos em silêncio, evitando máculas, marcas. 
           O livro, para mim, pede que eu descubra nele surpresas, achados. Ao retornar a um livro, quer para relê-lo ou apenas para relembrá-lo (os olhos percorrendo as páginas ao acaso; a mão quase carinho). Gosto de encontrar minhas cicatrizes, as páginas todas tatuadas de mim.
           Uso lápis, o risco sempre podendo desaparecer caso a um possível outro dono desagradem. Eu não, eu gosto de perceber as anotações de outros nos livros que encontro escondidos em prateleiras de sebos: servem como bússolas, como indícios de rumos a tomar. Ou não. Placas indicativas nem sempre servem de guia. A desobediência pode ser caminho para novas descobertas.

sexta-feira, 14 de junho de 2019

A poesia de Maria Dinorah

Maria Dinorah foi, no Rio Grande do Sul, nossa primeira poeta para a infância. Como professora, sentiu falta de poemas que conversassem com as crianças, que pudessem trazer-lhes deleite e também reflexão, como bem apregoou Horácio. Sua poesia dialoga com formas populares, com o folclore, mas também apresenta temática com forte conteúdo social. 


A convite da Revista Aquelarre de Literatura Infantil (Argentina), em seu primeiro número de 2019, expresso meu olhar sobre a poesia da Dinorah, a quem tive o prazer de conhecer. Segue o link. Há uma versão em português e uma em espanhol.

Em espanhol:
http://www.aquelarre-revistalij.com/index.php/aquelarre/article/view/184

Em português:
http://www.aquelarre-revistalij.com/index.php/aquelarre/article/view/185

terça-feira, 11 de junho de 2019

Saberes líquidos

E me inauguro poeta para a madureza. Não que haja poesia para esta ou para aquela idade, creio que a palavra poética nos toca ou não nos toca. A literatura, sempre defendo, precisa ser filtrada pelo viés da emoção. Não a emoção imediata, aquela que só diz respeito à vivência ou à experiência daquele que a torna palavra. Não, a palavra poética precisa ter a tal dose de fingimento proposta por Pessoa: finge-se uma dor que, deveras, é sentida. 
Difícil arte, sem dúvida.
Foto: Graziella Comelli

Sempre admirei os grandes poetas, aqueles que conseguem fazer do um o vário, aquele que consegue transcender sua dor e senti-la acolhida na dor do outro. A poesia necessita de saberes, expressa saberes, não aqueles sólidos, feito pedra, mas os líquidos, que se infiltram nas frestas de nós e nos contaminam, e nos irrigam, e nos lavam, e nos imaculam. 
Água e poesia buscam dizeres em mim.
Não sei se os executo com a forma e o sentimento com que os poetas concedem às suas palavras, não sei. Mas tento. E, por uma série de casualidades, e por alguns desejos, não meus, mas meus também, minha poesia ganha a rua, na edição do Lucas Krueger, para a Artes e Ecos.
Agora é ser aguardo.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Artigo sobre a memória em Lygia Fagundes Telles

Nestes últimos meses, andei envolvido (novamente, e confesso que acreditava estar distante das discussões acadêmicas) com a crítica literária em virtude do Pós-doutorado que estou desenvolvendo na PUCRS, sobre a supervisão do Luís Antonio de Assis Brasil. Meus caminhos de criação (faço o pós em escrita criativa) flertará com a invenção de "Alice no País das Maravilhas", texto que coleciono (tenho bem mais de cem diferentes exemplares). Todavia, aqui, posto o link de um artigo que escrevi sobre uma das minhas autoras brasileiras preferidas, Lygia Fagundes Telles. Se alguém quiser conferir meu olhar sobre "Invenção e Memória", mais recente livro de Lygia com contos inéditos, basta acessar no link.

http://periodicos.unincor.br/index.php/recorte/article/view/5274/pdf_143

domingo, 5 de maio de 2019

Quando a poesia vira música

Quando escrevo, nunca sei bem a recepção que um livro ou um texto meu possam ter. Escrevo para ativar sonhos, para que minhas palavras, meus personagens possam encontrar algum coração que os acolha. 
Este é o desejo.
Todavia, não tenho nenhuma ingerência sobre ele. Por vezes, há livros que tomam rumos inesperados: encantam corações e mentes infantis e adultas; estabelecem conexão com o ser e o agir adolescentes; outras vezes, viram livros pouco lidos, pouco comentados. Há vezes também que ser tornam outros objetos artísticos no interior das tantas salas de aula pelas quais andam.
Pois no dia 15 de abril recebi um presente.


Os poemas de meu livro "Tantos Barulhos", editado pela Edelbra, viraram canção e encheram os espaços da escola Nanci Pansera, em Canoas, de sons e sons e ritmos e melodias e vozes infantis que cantaram com empolgação meus poemas. 
A musicalização foi projeto do professor de música, o Diego. Um cara em que se percebe o entusiasmo e o amor em ser alguém que abre novos olhares àquelas crianças, inaugurando para ela um universo repleto de musicalidade.
Foi lindo o encontro, foi bacana ouvir minha poesia virada música.
São estas surpresas boas que me fazem cada vez mais acreditar na literatura e na arte como ponte entre o um e o outro, que me fazem crer que a arte e a educação são porteiras abertas ao sonho e à cidadania.
E que venham mais momentos como este, e que existam mais professores como os da Nanci Pansera.



sexta-feira, 12 de abril de 2019

Eu + Portão = Patrono da 30ª Feira do Livro

         A atividade de escritor tem seu tanto de alegrias. Muitos: o encontro com uma boa história a ser narrada ou com um bom verso que se arvore poema; a escrita (que embora uns digam solitária) sempre acompanhada de tantas vidas urdidas pela nossa emoção e desejo; a publicação de um novo livro; o encontro com leitores, quer presencial ou não, para troca de afetos e de saberes sobre o escrito/lido. 
Muitas as alegrias, de fato.
          Ontem, tive mais uma. Encontro com a secretária de educação de Portão, a Rosaura, e sua equipe. Um café no MARGS e o convite para que, de 29 de maio a 02 de junho, eu seja o patrono da 30ª Feira do Livro no Município. Bacana também que junto à equipe, estava a bibliotecária responsável pela Biblioteca Municipal, que, eu soube, será reinaugurada durante a Feira do Livro. Soube também que os leitores da cidade, alunos e professores, terão à sua disposição vales-livro, a fim de adquirirem acervo literário pessoal.

         Motivos, neste tempos tão sombrios de ataques à educação e à cultura, para tristezas existem. Porém, também há estes oásis. há gente crendo na mudança, na construção da esperança, na luta pelo sonho. E ele, sabemos, se constrói com mais afinco se mergulhado em tintas de cultura: boa música, muita literatura, artes plásticas, cinema, teatro, enfim.

         Motivos tenho, pois, para alegrias. E que sigamos, como diz o slogan da Feira de Portão, "Semeando literatura e colhendo conhecimentos".

sexta-feira, 29 de março de 2019

Eu + Taquara = Patrono da Feira do Livro

Um escritor vive para a escrita, é certo. E se basta nela. Não, um escritor não se basta na escrita, ele carece de leitores. São estes que significam a carreira do escritor e atiçam a necessidade de mais e mais textos: contos, poemas, novelas, romances. 
Um escritor pode traçar caminho por apenas um gênero, pode buscar atingir apenas um tipo de público-leitor, mas pode também se inventar, se reinventar; pode flertar com todos os gêneros e escolher um entre tantos para criar seus universos de palavras. Pode até, quem sabe, criar algum gênero. Um escritor pode tudo o que a palavra permite. Porém, só se consolida como escritor ao ser lido, e relido, e trelido e.
Assim, projetos cujo objetivo seja promover leitores, despertar o desejo pela palavra literária são extremamente necessários, sobretudo quando os ventos que sopram anunciam tempestades. A arte pode ser boia, a arte pode ser força e lenitivo.
Projetos de leitura e Feiras de livro (desde que tenham como base a leitura de livros) são fundamentais para que o escritor exista, desperte, sobreviva. 
Ser patrono de uma Feira, nesse sentido, é abrir possibilidades para que mais e mais palavras surjam, sejam, tornem alguém mais e mais escritor. Ando me sentindo assim com o convite da organização da Feira do Livro de Taquara para ser o patrono de sua tradicional feira. Ainda mais no ano em que completo 25 anos da publicação de meu primeiro livro.
Só sou escritor por que fui ao encontro de quem me lê. E sigo indo.

Abaixo, link para matéria do jornal Panorama:

/http://www.jornalpanorama.com.br/novo/escritor-caio-ritter-sera-o-patrono-da-feira-literaria-de-taquara/

segunda-feira, 25 de março de 2019

De novo, falo de bibliotecas

Bibliotecas são espaços necessários, sempre. E são necessárias por se mostrarem como espaço de possibilidades: um leitor é mais que uma pessoa, é vários, é tudo o que as histórias e os poemas lhe possibilitam: é homem, mulher, bicho; é robô, planta, herói intergaláctico, é o que quiser e poder ser.
Livros são convite ao sonho.

Ah, e tudo anda tão sombrio, tão triste, tão pouco esperançoso. Pessoas têm seus direitos roubados; barragens enchem vidas de lodo, de barro, de morte; casas são derrubadas, queimadas; e o eco de vozes a incentivarem o feio, o desumano ecoam aos muitos ventos.

Uma escola é invadida por jovens; jovens que trazem nas mãos armas e não livros. 
Armas ameaçam, amedrontam, ferem, matam.
Livros acolhem, divertem, constroem, empatizam, inventam sonhos.

Bibliotecas são espaços necessários, cada vez mais. Sobretudo por oferecerem a fantasia grátis. Livros nada mais exigem do que o desejo de lê-los. Desejo que eu tive um dia.

Meus pés, ainda pequenos, ainda desconhecedores do mal do mundo, mas já suspeitando que ele existia, entraram um dia em uma biblioteca pública. E os livros se ofereceram a mim, a mim que tão pouco sabia do viver, a mim cuja vida se reduzia a uma rua. Pois foi na biblioteca de minha escola e, depois, em tantas bibliotecas públicas que me descobri leitor.


Encontro com leitores na Biblioteca Popular do Arquipélago, da qual sou padrinho.

Bibliotecas são espaços necessários, sim. E se a biblioteca é popular, mais ainda sua existência se torna vital. Hoje, as bibliotecas em minha cidade correm risco de vida. No Estado em que vivo, as bibliotecas escolares correm risco também: Há quem acredite que lugar de professor é na sala da aula, pensam que bibliotecas não são lugares de formação do humano. 
É tão estranho que homens e mulheres que se dedicam à vida pública possam não perceber o óbvio: viver entre livros é alimentar a capacidade de sonhar e de sobreviver à hostilidade do real. 



sábado, 2 de março de 2019

Uma criança morre

Uma criança morre. Uma criança de sete anos morre. Morte abrupta, inesperada, provoca dor infinda, dor que dificilmente terá cura no coração daqueles que partilharam seu afeto com uma vida que ainda se assombrava com o próprio viver.
Uma criança de sete anos sabe pouco das maldades da vida.
Uma criança de sete anos é meio anjo ainda: alça voo pelo mundo da fantasia, abre os olhos para o sonho, brinca de ser gente grande, desconhecedora do quanto de perversidade um coração adulto pode guardar.
Uma criança de sete anos, embora sinta, ainda não tem a compreensão total de que a justiça é pouco justa.
Uma criança de sete anos não entende o motivo de sua casa ser invadida à noite, de seu computador ser levado para nunca mais: como acreditar na segurança? Como agora jogar seus jogos, fazer suas brincadeiras?
Um menino de sete anos, ao ter sua vida ceifada, esperaria, talvez, a dor de todos, a dor do mundo, a dor da incompreensão das regras que regem nossa vida, regras estas que permitem que uma criança de sete anos morra. Na véspera, uma vida toda pela frente. No outro dia, uma febre alta e a morte.

Quando uma criança de sete anos morre e se ouvem aplausos e alegrias, a certeza de que a há gentes não aprenderam nada sobre empatia, sobre ser humano ecoa dentro de mim. Não terão sido amados? Não terão partilhado afetos? Não terão em suas vidas crianças pelas quais nutrem afeto, as quais, se tivessem suas vidas ceifadas em plena infância, lhes provocaria dor?

Isso tudo dá um vazio tão grande.

Uma criança de sete anos ao morrer só deveria provocar em qualquer pessoa um sentimento único, forte, de apoio aos parentes desta criança: pai, mãe, irmão, avô, tios.

Três retratos

O traço sempre representa o olhar do desenhista sobre o objeto desenhado. Não sei se sou "retratagênico", por vezes creio que sim. Afinal, foram várias as vezes que fui desenhado pelos mais diferentes corações. Aí, fico me percebendo pelos diferentes olhares que me desenham e me tatuam em papel, em traço, em imagem. E gosto.
Seguem três diferentes olhares: um infantil, um juvenil, um adulto. Aí, me faço e refaço continuadamente.


No traço da pequena Dara, minha leitora querida, que registrou nosso momento de bate-papo.


 No traço de meu aluno Caruso, desenho captado em lápis e tampo de classe.

No traço do desenhista, Daniel Tofolli, que fez este carinho especial para mim.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Algumas frases não tão inocentes

"Nem sempre o espelho é quem dá conta da verdadeira face. Só o mergulho no poço poderá nos dizer quem somos".

"Quando não se sabe para onde ir, qualquer caminho é caminho. Ou não. Uma estrada sempre pode ter pedras, buracos a impedir trânsito".

"Numa estrada esburacada, cair em um buraco é mera questão de tempo ou de falta de atenção".

"Eu sei bem o que quero; o que me falta é a compreensão clara sobre o que não desejo".

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Hoje fiz sagu


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Hoje fiz sagu.
Para quem desconhece, sagu é um doce a base de suco de uva ou de vinho. Doce muito peculiar aqui no Rio Grande do Sul, costumeiramente comido acompanhado por um creme de baunilha.
Fiz o sagu. Fiz o creme.
Fiz o doce a pedido de uma das filhas.
Hoje fiz sagu.

Fazer sagu para a família, ler um livro, ir ao teatro ou ao cinema, encontrar amigos, escrever, rir, amar... Estas têm sido minhas formas de resistência mediante o tanto de notícias trágicas, quer aquelas como as proporcionadas pela Vale, quer as determinadas pelo atual governo. Atacam a previdência, atacam as empresas públicas, destroem a natureza, perseguem índios, negros, mulheres, trans, perseguem qualquer voz que possa se insurgir contra atos tão medievais perpetrados por governantes publicamente envolvidos com atos de corrupção. E tudo soa normal: as ruas calam, as praças calam, panelas calam, bandeiras calam. Há os que percebem a burrada feita; há os que seguem a gritar contra a corrupção, defendendo corruptos. 
Difícil se torna a luta, quando os atacados se unem ao feitor; quando os que estão sendo despossuídos de seus direitos, se entendem como parcela beneficiada da população.
Tudo muito torpe, tudo muito triste.
A arte, o afeto, os amigos, meu sorriso no rosto é algo que não me podem usurpar. Minha palavra é minha: podem calá-la enquanto voz, jamais poderão domar o pensamento.
A arte liberta.
A arte questiona.
A arte possibilita o sonho.
É necessário, pois, fazer sagu. Comer sagu.
No pouco, resisto.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Carta de leitora

Bom quando o que escrevemos ecoa e percebemos que nossa luta e nosso pensar encontra guarida em outros corações. É a certeza de que não estamos só. Na verdade, creio que nunca estamos sozinhos em nossos sonhos. Sempre haverá alguém que nos estendera a palavra, a mão, e estas se tornarão pontes. Abaixo, segue a carta que recebi da Helena, uma pessoa que atua em uma biblioteca comunitária e que a percebe como condição de saúde, embora haja quem não julgue importante os livros. Aproveito também para partilhar foto de minha ação na Biblioteca do Arquipélago: Piquenique Literário, querendo que ela sobreviva, lembrando sempre que um arquipélago nos dá a clara sensação de grupo. Não somos, decididamente, uma ilha apenas. E isso é bom.



Boa noite, Caio!
Li, com pesar, o teu artigo Bibliotecas
e pontes. Sou bibliotecária e trabalho na biblioteca de uma unidade de saúde de POA, cujo acervo é mantido com doações dos leitores (pacientes da unidade). Sou funcionária concursada do Ministério da Saúde e frequentemente sou assediada para trabalhar na área administrativa. Várias vezes meus coordenadores verbalizaram que não há necessidade de ter uma biblioteca numa unidade de saúde. Além do atendimento individual, faço atendimento aos diversos grupos de pacientes existentes na unidade. Trabalho com a leitura de forma terapêutica, a fim de minimizar o sofrimento e abrir novos horizontes aos pacientes. Tenho recebido um retorno muito
gratificante. Então, fica muito difícil entender esta situação. Tenho tempo para me aposentar, mas, além de ser apaixonada pelo meu trabalho, sei que é a oportunidade para o fechamento da biblioteca. Por tudo isso, sinto-me solidária a tudo que escrevestes. Espero e desejo que tenhas sucesso no que se refere a Biblioteca Comunitária do Arquipélago. Caso haja algum movimento para a manutenção de bibliotecas comunitárias, conte comigo! Um abraço! 

Helena Pinto Costa

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Bibliotecas e pontes

Bibliotecas e pontes

            Há quem erga pontes. Elas são importantes. Elas unem duas fronteiras, estendem-se majestosas e estimulam o progresso. Sobre elas, passam automóveis, caminhões, ônibus e um tanto de gentes em seus afazeres. Uma ponte incentiva a fluidez da vida moderna, auxilia o deslocamento, estimula a rapidez tão endeusada nestes tempos ditos modernos.
            Todavia, há quem construa bibliotecas. E estes espaços de magia e de sonhos, que têm como centro a palavra literária, o livro, também são pontes. Não estas pontes rudes de concreto que poluem a visão e rasgam o céu com seu cinza. São pontes entre o eu e o outro; pontes que promovem o olhar para o altero, que sensibilizam, que contribuem com a criticidade, que resgatam o humano em nós.
            Penso que a construção de uma ponte de concreto não pode acarretar a destruição de uma biblioteca. Ainda mais quando esta é comunitária, construída pelo desejo de uma comunidade e com recursos do Plano Municipal do Livro e da Leitura. Parece estranho que isso possa ocorrer em minha cidade, parece invenção de algum escritor, parece tema de livro.  Não é. Em Porto Alegre, uma biblioteca corre risco de morte.
            Há alguns anos, tive o prazer de conhecer a Biblioteca Comunitária do Arquipélago, na Ilha dos Marinheiros, para a qual fui convidado a ser padrinho. Lá encontrei voluntários, mediadores de leitura, gente com sorriso no rosto, que, por meio da leitura, semeia mais sorrisos em crianças, as quais, muitas vezes, o sonho é negado. Conheci meninos e meninas que me apresentaram sua comunidade, que riram para as histórias e para os poemas que lhes eram lidos, que liam poemas para mim. Todavia, isso pode acabar.
            Soube que a Biblioteca da Ilha dos Marinheiros corre o risco de ser derrubada em virtude da construção da nova ponte do Guaíba. Certo, entendo que o progresso precisa avançar, entendo que parte da comunidade da Ilha precisa ser remanejada para outro espaço, só não consigo compreender o porquê de o Poder Público negar o prosseguimento do papel fundamental desta biblioteca, não apresentando de forma objetiva uma proposta para sua realocação em outro local da Ilha, a fim de que possa seguir o trabalho tão bacana de formação de leitores que há anos vem sendo construído. Este tipo de ponte precisa também ser estimulado: a ponte da leitura, da arte, dos afetos compartilhados no interior de uma biblioteca. Assim, rogo que as autoridades competentes possam dar um final feliz para a Biblioteca Comunitária do Arquipélago. E não há outro possível que não seja a sua continuidade.

Caio Riter, escritor e professor
Artigo publicado no Correio do Povo em 30 de janeiro de 2019.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

"Três dias" e mais algumas ideias

Está em processo de edição meu mais recente livro juvenil. A história de Matias, um garoto que precisa tomar conta dos irmãos e da casa enquanto sua mãe trabalha fora. A ideia ficou durante muito tempo sendo maturada em mim, vinha e ia, me assustada, me assuntava. Interessante é que o Matias surgiu após uma conversa qualquer certo dia, há muito tempo, quando eu e Laine andamos passeando por São Paulo. Fomos jantar com a Penélope Martins, escritora querida. Ela falou de seu trabalho em comunidades e do quanto encontrava jovens que precisavam labutar no lar e no cuidado com irmãos menores a fim de que seus pais pudessem ganhar o sustento familiar. Famílias, aliás, em sua maioria, sustentadas pela mãe. 
Então fiquei pensando em como seria um jovem viver tal realidade. E isso durou anos: aí foram surgindo o Matias e seus amigos, os irmãos Pilar e Deco, a mãe, os namorados da mãe, a Jaqueline. Abaixo, partilho com meus leitores o início da história de Matias, que será lançada pela Editora do Brasil ainda este ano: "Três dias e mais alguns".

Faça. Ou não faça. Não existe a tentativa.
Mestre Yoda

Antes

O meu personagem preferido de Star Wars sempre foi o Chewbacca. Mas o que isso diz de mim? Nada. Acho que nada. Só que achar, como costuma dizer o sor Ernesto, é coisa pra sortudos. A gente tem é que ter certezas. E ele frisa bem, a voz grossa: Certezas. E aí nos olha por detrás dos óculos de aros verdes e repete: Certezas.
Todavia, certezas eu não tenho.
De nada.
Nem de que o Chewie ser meu personagem preferido de Star Wars possa ter alguma importância ou relevância na minha vida. E dizer algo de mim. Acho que de verdade-verdadeira nada diz mesmo. Ah, e olha o acho aí de novo. A sora Samira sempre diz que numa dissertação não se pode usar expressões de dúvida. Ou vocês sabem ou não sabem, ela costuma afirmar. Fala também que a gente deve saber dissertar, se é que se quer passar no vestibular e ser alguém na vida, ela adora reforçar isso, sempre duvidando de que a gente tenha capacidade para tal. A maioria dos meus colegas até acho que acredita que não tem mesmo. Mas eu quero. E vou.
Ser alguém na vida.
Ser alguém.
A gente (eu, no caso) é a gente mesmo, e se é, é porque é, e pronto. E se eu quiser achar algo, acho. Desde que não seja na dissertação do vestibular, é claro.
Quem sabe.
Talvez.
De repente.
Daí que nenhum professor bizarro, que fica preocupado com a composição química do chiclete (tipo o Ernesto), só com o objetivo de nos amedrontar para que a gente nunca mais ponha um chiclete na boca, vai dizer se eu devo achar ou não devo achar. Acho e pronto. Tá achado. Aliás, há muitos professores deste tipo. E, agora, bem na minha frente, um deles nos apresenta o número pi.
De fato.
Com certeza.
Inequivocamente.

Aham, sei. 
(...)

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Tipos de escritores: os ensimesmados e os conversadores

        Rosa Montero, em "A louca da casa", particularmente no capítulo 17, aborda diferentes categorias de escritores, definições levantadas por diferentes autores e por ela mesma. Algumas definições são pautadas não no estilo ou na concepção de escrita, mas no resultado: escritores mamíferos produziriam grandes romances em número de páginas; escritores insetos, textos mais curtos, todavia precisos. Como exemplo, cita "A metamorfose", de Kafka, como resultado de um escritor inseto, e "Ulisses", de Joyce, como modelo mamífero, afirmando que o livro serve mais como exercício modernista do que como romance, algo em que acredito também. O tipo de livro incensado por quem não o compreende.
              Um livro, creio, necessita ser comunicante; pode - claro - ter sua parcela de invencionismo na linguagem ou na estrutura, reinventar a linguagem, ser hermético, todavia nada disso (nunca) pode ofuscar o princípio maior de uma narrativa que é o contar uma história.
            A partir de tais ideias, me peguei a pensar em como categorizaria os escritores caso tivesse que os tipificar. É possível que buscasse observar seus projetos literários e, assim, os dividiria em dois grupos: o primeiro eu chamaria de escritores conversadores, aqueles que olham para fora, para o outro, para o altero. O segundo grupo, eu chamaria de escritores ensimesmados, os que olham apenas para si, que não estendem olhares aos leitores. 
     Os conversadores buscam discutir o mundo que os cerca, suas inquietações, suas problematizações, por meio de linguagem e de estrutura inventiva mas não impeditiva de compreensão. Tais autores querem o diálogo, querem expor uma dor comunicante. São escritores que emocionam (a arte precisa emocionar), que sensibilizam, que de alguma forma conseguem tocar o outro, desacomodar o outro.
         Já os ensimesmados produzem uma literatura um tanto masturbatória. Querem entortar e reentortar a linguagem, mais preocupados com a estética da linguagem do que com a narratividade textual, esta fica apagada, escondida no exagero estético. O leitor, para penetrar no texto, precisará dominar a chave para decifrar o bosque árduo da linguagem excessivamente trabalhada, ficando, sem sua maioria, apartado do texto que, em vez de dialogar com a emoção, resulta frio, revela-se produto formatado pela razão, cujo maior objetivo é o dizer bonito, é o burilamento das construções frasais. Assim, tudo se torna distante e o autor acaba, qual um parnasiano, isolado em sua torre de marfim, não raro se sentindo um incompreendido, alguém cujos leitores são incapazes de compreender.