quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Crônica: Pernas e pés


Bastava equilíbrio.
           Eram dois pedaços de pau, compridos e fortes. Pregado, mais ou menos no meio, um pequeno pedaço de madeira que servia de suporte para os pés. Construção caseira, as pernas-de-pau eram capazes de transformar aqueles pequenos homens que éramos em gigantes. E os guris saíam caminhando pelas ruas, aos gritos e risos, numa verdadeira procissão de estranhos seres. Passos de pau a executarem um batuque desconexo e fora de ritmo pelas pedras das calçadas. Meu irmão maior ia na frente, comandando o bando com suas pernas-de-pau.
            E eu os via partir. Iam em festa. Sentado no cordão da calçada, ficava apenas a olhá-los, a vê-los sumirem em alguma esquina ou na distância. Não que eu não tivesse pernas. Tinha-as, mas não estava em mim a possibilidade do equilíbrio, da força que me parecia necessária para o primeiro passo.
            Quando eles sumiam, eu repetia o ritual, tão observado neles. Apoiava as pernas-de-pau no muro, sentava-me sobre elas, colocava os pés nos pedaços de madeira. Cada braço abraçava uma das pernas: um leve impulso me afastava do muro e eu ficava suspenso do solo num tosco equilíbrio sobre as pernas, tentativa inútil de passo, que me obrigava a pular para o chão, pernas-de-pau atiradas uma para cada lado.
            Quantas vezes tentei? Nem lembro. Também não lembro como descobri uma forma de acompanhar o cortejo equilibrista. Ora, se não conseguia domar as pernas, restavam-me os pés.
Pés-de-lata.
           Duas latas de mesmo tamanho, dois pregos e um forte cordão eram os materiais necessários. Um furo no fundo de cada lata, por onde cada ponta do cordão passava e depois eram amarradas nos pregos que serviam de trava. Segurava-se o barbante no meio, subia-se descalço sobre as latas, os dedos apertando o cordão, e pronto: as latas aderiam feito chinelos havaianas em meus pés.
            E nem bem a gurizada montava nas pernas-de-pau, eu já subia em meus pés-de-lata e, juntos, saíamos pelas ruas num passo ritmado, marcado pelo som fechado das madeiras sobre as lajes e paralelepípedos e pelo som metálico dos meus novos pés.

           

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Palavras 34


TEMPO -  Sempre ele, a nos devorar, fera sedenta, sem piedade. Nós, os títeres, na luta, quase insana, de nos fazermos perenes. E, creio, só há possibilidade de eternidade mesmo é no coração de quem nos ama.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Os túneis da igreja de Viamão

A igreja matriz de Viamão, Nossa Senhora da Conceição, é a primeira (não sei se única) igreja-forte do Brasil. Contam que, em tempos de guerra, quando a cidade era a capital da província, suas pesadas portas eram fechadas e a população ficava protegida (claro que não devia ser toda a população, né? Talvez os mais afortunados, apenas). Pois, quando estive em Viamão, certa vez me contaram a lenda dos túneis que atravessam a cidade. Dizem que eles partem da igreja. Que há uma passagem secreta e por ela os revolucionários saíam escondidos, e mergulhavam nos túneis, que desembocavam nas fontes espalhadas pela cidade. Lenda, apenas lendas. Ou não.


O fato é que visitar Viamão gerou o texto "Cinco enigmas, um tesouro", que participou do Projeto Livros na Mão, coordenado pela escritora (e amiga) Marô Barbieri, e que no momento ainda não está comprometido com nenhuma editora. Vai um trechinho aí pra quem é curioso:


1.    O sonho

Um raio estoura lá para os lados dos charcos de Tarumã. O cavalo empina, talvez pelo ruído do trovão, talvez pela chuva forte, gotas quase lâminas a machucarem seu pelo. Gotas que também ferem o rosto do cavaleiro, que segura as rédeas firmes e toca o animal em direção à igreja. Aquele é seu destino, lá estará seguro para fazer o que deve fazer.

Noite escura, céu todo fechado pelas grossas nuvens que desabam sobre Viamão. O homem açoita o cavalo. Coração disparado, aperta contra o peito um pacote. Nem sombra de gente alguma nas ruas de pedra. Quem afinal seria louco de sair do aconchego dos cobertores numa noite fria como aquela? Quem além dele? Somente aqueles que o perseguem: os homens do Serapião.

Chega à praça, olha para trás, para os lados: ninguém. O padre, àquela hora, deve estar no segundo sono. Melhor assim. Nada de testemunhas. Nada.

Desce do cavalo, bate em seu lombo para que ele se vá, para que suma pelas ruas da cidade. Que seus perseguidores se vão atrás do animal e se esqueçam dele ali na Igreja de N.Srª da Conceição.

Empurra a porta da igreja-fortaleza, entra. Fecha a pesada porta atrás de si e o frio gélido do prédio santo o faz arrepiar-se. Benze-se, caminha até o altar. Um raio explode no céu e ilumina a nave em tons coloridos, filtrados pelos vitrais. A porta da igreja abre-se com um estrondo. O homem volta-se, deixa o pacote que traz cair ao chão. O peso do que ele contém lasca o piso, deixa uma marca funda.

Teme.

Mas é apenas o vento. Apenas ele. Segue em direção ao altar, não sem antes pegar o pacote. Sabe o que tem que fazer.


Multiplicações

Eu, multiplicado na visão de meus leitores. Acabo sendo muitos, e um só. Na verdade, talvez tenhamos lá outros que habitam em nós. Pro bem, pro mal.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Caio e os escritores: encontro com Mia

Há, creio, uma aura que aproxima leitor e escritor. Pelo menos comigo é assim. Há autores cuja escrita é sempre convite, há autores cujas palavras se tornam necessidade de encontro, há autores que fico desejando conhecer. Porém, em certos momentos, a escrita não condiz com a pessoa e a decepção pode ser motivo de afastamento, dizem alguns. Eu sempre quero acreditar que não. Pelo menos não com os autores de que gosto.
Pois novembro me brindou com um encontro inesperado.


Quando soube que o autor moçambicano Mia Couto estaria em Porto Alegre, na Feira do Livro, pensei que, com certeza, iria ouvi-lo falar. Afinal, a estética de sua escrita, os mundo urdidos por ele são de fascínio aprisionante. Uma vez degustado, o desejo de quero mais se faz presente. Assim, é bom. Assim, é que a literatura de alguém se prende em nós, se tatua em nossa alma. Pois a promessa de encontro com Mia foi além de um mero assistir a uma palestra. Abro e-mail e a querida Cleonice Bourcheid, poeta que encanta, me convida para um jantar em que receberia Mia Couto.
Meu aceite, é óbvio, não demorou mais que o tempo para digitar a resposta.
E no dia 10, lá estava eu, de longe, observando o escritor de tantas palavras desacomodadoras. E a aproximação provável se deu; e as palavras foram trocadas; e o mergulho em nossas arquiteturas literárias foram trocadas (eu aproveitando para saber os caminhos de Mia em sua criação); e um livro foi autografado; e o pedido de que eu autografasse um meu para ele também. Tudo momento de entendimento e de confirmação de que, por trás do escritor incensado pela mídia e pela academia, existe um homem. Um homem humano. Nada de vaidade ou de estrelismo. Ele mesmo afirmando que tudo o que tem para dizer está nos seus livros; eles é que valem.
Gostei de ter estado com Mia Couto. Gostei do homem, assim como gosto do escritor. E isso foi bom.