Ando por casa; aulas presenciais interrompidas, encontro com os alunos ocorrendo por ambientes virtuais. Tudo segue dentro das possibilidades que a tecnologia hoje oferece. Creio que não é a mesma coisa que a discussão olho no olho que a sala de aula propõe. Sempre, acho, o contato físico superará a tecnologia. Ela é útil, por vezes, como agora, necessária, a fim de que tudo não paralise de vez. Assim, preparo e dou aulas, leio, aproveito também para escrever. Na verdade, digito meu novo original, que tem como título provisório "O sobrevivente" (muito a ver, aliás, com estes tempos vividos) e que foi escrito todo de forma manuscrita. Achei necessário usar este recurso da escrita manual em virtude da estrutura que escolhi para contar a história do Francisco.
Mas quero falar de um tempo outro: um tempo de infância ou de adolescer, não lembro bem. Tempo, todavia, de reclusão, como este agora. Eu era guri e um surto de caxumba atacou a alegria de se ser pessoa com poucos compromissos. Amigos iam, um a um, contraindo a doença, que exigia que se ficasse de resguardo, diziam que se não nos cuidássemos, ela poderia "recolher" e a gente se tornaria estéril. Ter filhos ou não, naquela época, não era desejo. Todavia, a forma como os adultos falavam com a gente concedia um tom de maldição: "Se não se cuidar, ficará estéril". E eu perguntava, meio medroso: "O que é ficar estéril?". E aí, num tom de voz penumbroso, vinha a resposta: "Nunca poderá ter filhos como todas as outras pessoas". Ora, é claro que, quando se é criança ou adolescente, o que mais se deseja é ser como os outros. A diferença parece ter um dado de rejeição, de marca de Caim.
Pois foi, então, que a caxumba resolveu atacar meu irmão. Minha mãe exigiu a reclusão dele, queria proteger o filho. Todavia, como ele reclamava da solidão, coube a mim a tarefa de ficar com ele em casa. Eu, saudável; e a rua lá fora, que me esperava com sua possibilidade de alegria, de fantasia, de imaginação. Fui um garoto lotado de criatividade: inventava brincadeiras, jogos; criava personagens, histórias. Qualquer pedaço de graveto poderia virar um monstro; qualquer flor, uma princesa necessitada de proteção. Meu irmão era mais realista, curtia jogar bola, cartas, coisas que não exigiam uma mente tão fantasiosa. Assim, fiquei eu preso com ele, eu que de caxumba nada sabia.
Então, meu irmão ficou curado, a rua o acolheu com os braços abertos. E eu? Eu fiquei com a caxumba dentro de casa. Depois que ela o abandonou, não é que a danada resolveu fazer morada em mim? Novamente, a rua não era minha. Agora por uma interdição maior ainda. Eu não era o acompanhante do irmão adoentado; eu era a própria doença. E meu irmão? Ficou solto na rua a empinar pipas, a correr atrás da bola. Eu vendo tudo por detrás da vidraça, como agora, mas com a mente livre, repleta de fantasia e de imaginação, não carecia de companhia. Eu tinha toda e qualquer presença que desejasse.. Atrás daquela janela, era João preso na casa da bruxa, era Rapunzel em sua torre, era o que eu queria ser.
Nestes tempos de vidraças e de portas fechadas, neste tempo de pouca rua, façamos isto: um mergulho em nós mesmo por meio da imaginação e da fantasia. Livros, séries, filmes ajudam a fortalecer nossa mente. Escrever também.
5 comentários:
Precisamos muito encher nossa cabeça com sonhos, desejos e fantasia para que, ao estarmos soltos, possamos realmente estar livres e voar. Adorei teu texto.
Lindo Caio. Eu tinha nove anos e fiquei mais de uma semana hospitalizada. E fiquei em reclusão. Visitas apenas podiam me ver e eu as vê- lá por uma vidraça. Acenos, mímicas, abraços pela vidraça. Ganhei muitos presentes . Queriam me compensar por eu estar ali presa. Mas só pude pegar na minha mão e tocar em cada um dos presentes quando a porta se abriu e eu estava livre.
e no coração. Eu fiquei várias vezes com amigdalite presa em casa. Mas uma me marcou muito. Foi a última em pleno Nata!Eu tinha 14 anos. Passei a festa de cama. Entretanto, este confinamento do Coronavírus é terrível. Muito triste!
e no coração. Eu fiquei várias vezes com amigdalite presa em casa. Mas uma me marcou muito. Foi a última em pleno Nata!Eu tinha 14 anos. Passei a festa de cama. Entretanto, esta prisão do Coronavírus é terrível. Muito triste!
e no coração. Eu fiquei várias vezes com amigdalite presa em casa. Mas uma me marcou muito. Foi a última em pleno Nata!Eu tinha 14 anos. Passei a festa de cama. Entretanto, esta prisão do Coronavírus é terrível. Muito triste!
Postar um comentário