Lygia Bojunga: palavras necessárias.
A década de 70 é um marco na
história da literatura para a infância e para a adolescência no Brasil. Até
então, com raras exceções, a produção trazia um forte cunho didático, com
lições de moral explícita e com a repetição de papéis sociais de forma conservadora
e doutrinária. Na contramão desta concepção de literatura como mera
transmissora de valores e de comportamentos, em que os leitores serão seres
meramente passivos, depositários e depósitos de uma visão de mundo adulta,
surgirá um oásis: autores e autoras, um tanto motivados pela visão lobatiana,
que percebem a literatura como um espaço lúdico, capaz de proporcionar
reflexões existenciais, respeitando o universo da criança e dos adolescentes,
dotando-os de protagonismo. Sua palavra, seu olhar sobre o outro e sobre as
coisas, sua percepção um tanto mágica e fantasiosa será respeitada. Assim, será
inaugurada (e se consolidará a partir de então) uma literatura com L maiúsculo,
literatura de verdade, já que não pretende outros objetivos que não o de ir ao encontro
das inquietações infantis ou adolescentes.
Nesse
sentido, a obra de Lygia Bojunga (1932), gaúcha de Pelotas, pode ser vista como
um divisor de águas. A dicção da autora romperá com uma linguagem estruturada
na gramática normativa, trazendo para o texto uma liberdade maior, com a
presença de coloquialismos, de gírias, de insubordinações gramaticais, que
promoverá a aproximação do texto literário da linguagem da criança ou do
adolescente. Além disso, Lygia tratará em suas narrativas de temas até então
considerados tabu. Temas que, para muitos, não combinam com a infância ou com a
adolescência, época que precisa ser blindada, protegida.
Todavia,
a literatura de Lygia Bojunga não fere a infância, ao contrário, inunda-a de
fantasia, de sonho, de imaginação, fundindo tal atmosfera a temas do cotidiano,
a questões existenciais, questões, aliás, não restritas ao universo da infância
ou da adolescência. Assim, morte, estupro, suicídio, abandono da infância,
separação, problemática de gênero, preconceito, entre outros, são temas
recorrentes na literatura bojunguiana.
Em
sua obra de estreia, Os colegas,
Lygia reinventa a fábula, tendo como personagens principais cinco animais que,
de certa forma, se insubordinam contra sua condição e, entregues à própria
sorte, irão trilhar caminhos à procura do autoconhecimento e de um projeto de
grupo. A autora, de forma lúdica, apresenta o mundo das ruas, a marginalidade e
o que pode advir dela, sem, contudo (aliás característica bastante presente na
obra de Lygia), expressar uma visão pessimista da realidade. Há lugar para o
sonho, há esperança para aqueles que exercem a solidariedade. Isso, no entanto,
como já dito, é feito de forma subliminar. A literatura de Bojunga passa longe
de qualquer doutrinamento e, como toda a boa literatura, suscita espaços para
que o leitor se encontre no texto e possa, a partir de sua reflexão, construir
seus saberes.
A
obra de Lygia é vasta. E consistente. Tanto que, em 1982, ela foi a primeira
escritora latinoamericana a receber o Prêmio Hans Christian Andersen, láurea
máxima da literatura infantojuvenil. Já em 2004, a autora também recebeu, pelo
conjunto de sua obra, o prêmio ALMA – Astrid
Lindgren Memorial Award – o maior prêmio internacional jamais instituído em
prol da literatura para crianças e jovens, criado pelo governo da Suécia.
Assim, se as premiações são muitas, sua galeria de personagens também
é riquíssima. Crianças como a menina Raquel, de A bolsa amarela (1976); ou os adolescentes Maria e Lucas, de Corda Bamba (1979) e Seis Vezes Lucas (1995),
respectivamente; ou o tatu Vítor, de O
Sofá Estampado (1980); ou ainda a cegonha Angélica, do livro homônimo
(1975), personificam problemáticas existenciais bastante presentes na vida de
crianças de todas as idades. Lygia não faz concessões temáticas, não menospreza
a infância, trata crianças e adolescentes como seres pensantes, capazes de, por
meio de uma linguagem extremamente simbólica e contestadora, interagirem com a
palavra literária, percebendo-a como possibilidade de compreensão do estranho
mundo que os cerca, o qual muitas vezes lhes parece de difícil compreensão.
Em
Corda Bamba, texto que virou filme em
2012, a vida de Maria muda completamente quando seus pais morrem e ela é
obrigada a viver na casa de sua avó, uma mulher pouco afetiva, que vê o poder
econômico como solução para todo e qualquer problema. Emblemática é a cena em
que a avó compra para Maria uma velha contadora de histórias. Como não tinha
tempo para ou como visse em tal tarefa algo pouco condizente com sua condição,
a avó adquire uma esfomeada velha e presenteia a neta com ela. O estranhamento
de Maria e sua inadequação a este novo mundo, já que ela foi criada num circo,
fará com que busque uma saída para a frieza da avó. E a escapatória não poderia
ser outra que não a fantasia: Maria abre portas, diferentes e estranhas portas,
nas quais resgata pedaços da sua vida, desde o encontro de seus pais, que
resultará numa bela e trágica história de amor,
até o momento presente, fazendo, assim, com que ela, agora senhora de
sua própria história, possa construir sua identidade.
Em
O Sofá Estampado, livro com uma
pegada mais infantil, Vítor é um tatu que se descobre apaixonado por Dalva, uma
gata cujo passatempo preferido é assistir a comerciais de tevê. Já que a amada
é consumista por natureza, Vítor se vê obrigado, a fim de que Dalva o perceba e
queira namorar com ele, a se tornar artista de propagandas. Só assim a gata irá
aceitar seu afeto, acredita ele.
Ecologia,
consumismo, influência dos meios de massa sobre as mentes são também temas
presentes na literatura da autora gaúcha que, aos oito anos, saiu de Pelotas
para viver no Rio de Janeiro, onde reside até hoje e onde mantém a Casa Lygia
Bojunga, espaço que abriga pequeno museu com a obra da escritora, além de
promover ações de leitura para crianças e adolescentes.
A literatura de Lygia
Bojunga é referência necessária, com certeza, para quem pretende ler o que de
melhor a literatura brasileira para crianças e para jovens tem produzido. Literatura que comunga
da premissa básica proposta por Horácio, poeta latino, ao apregoar as funções
básicas de um bom texto literário: promover deleite e instigar reflexão.
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