quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Caio Leitor 11: Alice no país das maravilhas


Um périplo no território da desrazão

A loura e pequena menina perdida num mundo repleto de fantasia já deu muito pano para manga, desde versões cinematográficas — a mais famosa talvez seja a da Disney (1951) — até reflexos na própria literatura. Depois da Alice de Lewis Carroll, nenhum outro personagem homônimo poderá fugir de refletir-se no espelho daquela que sonhava com um mundo onde os animais falam, as rainhas são enlouquecidas, o real não tem espaço. Personagens como, por exemplo, a protagonista de Reunião, de Lya Luft, ou a do conto Emanuel, de Lygia Fagundes Telles. Ambas perdidas, exiladas da realidade. Enfim, seres em busca.
Alice no país das maravilhas foi publicado em 1866, pelo jovem Charles Dogson, que se escondeu atrás do pseudônimo famoso, a fim de relatar as aventuras imaginadas e contadas para Alice, a predileta entre as três filhas do diretor da Universidade de Oxford. Andávamos, então, pela segunda metade do século XIX. Época em que subia ao trono e implantava um estilo marcante de governo, por mais de 60 anos, a rainha Alexandrina Vitória, mulher extremamente austera e obstinada que conduziria a Inglaterra a inúmeras conquistas e ao patamar de grande metrópole.
E o texto, que em princípio surgira com o intuito de agradar à pequena amiga, acabou por tornar-se um dos maiores clássicos da literatura infantil e a obra-prima de Carroll. A quem, hoje, alguns acusam de pedófilo por fotografar meninas seminuas, entre elas, Alice. Postura, no mínimo, ousada para uma Inglaterra de princípios morais extremamente rígidos. Mas isto é outra história. O que nos importa a biografia do autor, quando nos deparamos com um objeto singular em sua construção estética?
Embora este livro tenha entrado para a história da literatura como uma obra infantil, não se pode deixar de ver nele uma profunda crítica à sociedade inglesa e às suas estruturas. Carroll cria um mundo fantasioso e fantástico, em que se encontra a desconexa peregrinação da menina em busca de algum sentido para aquele universo, em que inexiste espaço para a razão. Imersa num mundo insólito, vítima da própria curiosidade, Alice tenta racionalizar, procura compreender as razões que organizam aquele ambiente confuso. Razão que parece ser a desrazão, a própria falta de limites racionais. Como encontrar outra resposta? Não estaria o autor querendo, exatamente, problematizar a questão, relativizando as fronteiras que separam real e sonho? Alice está perdida, longe de casa, da família, da gata Dinah. E longe de seu mundo organizado pela mão-de-ferro do estado, a pequena vaga meio tonta, sem saber direito para onde ir, mas percebendo que a única coisa que lhe resta é caminhar. Sempre.

Nessa verdadeira via-sacra é que ela encontra os seres mais grotescos, desde a Duquesa que nina um bebê-porco até a Rainha, cuja ânsia por ver-se respeitada e não contestada, faz com que repita incontinenti a mesma ladainha: — “Cortem-lhe a cabeça!”. Não podemos esquecer de referir a crítica à instituição escolar, presente na conversa com o Grifo e com a Falsa Tartaruga, ou a figura atarracada do Rei. Um ditador até certo ponto patético, que busca a execução de uma sentença a qualquer custo. A cena do tribunal, no final da narrativa, aponta também para o absurdo. Um verdadeiro pandemônio se arma, um leque de situações inverossímeis passa ante os olhos pasmados da menina que procura, a todo custo, organizar aquela loucura. E ali, no julgamento, encontram-se todas as criaturas que cruzaram por Alice durante seu périplo. Todos que interagiram com ela agem como se desconhecessem sua presença; mascaram-se a fim de se protegerem da fúria vingativa dos monarcas. Família, corte, escola e justiça revelam-se, na leitura de Lewis Carroll, como instrumentos não meramente coercitivos, mas, sobretudo, inverossímeis, ilógicos.
Em sua visita ao País das Maravilhas, a pequena Alice abre os olhos para o fantástico. Assim, real e fantasia se confundem. Sua aparente pureza inicial está agora maculada pela percepção da falta de racionalidade das estruturas mantenedoras do mundo regrado em que ela se vê inserida ao acordar do sonho. E fica a dúvida: sonho ou pesadelo? Sonho ou apenas reflexo invertido da realidade?
Alice tenta racionalizar, porém está imersa num mundo regido por outras razões. Um lugar mágico (ou louco) em que as falas e os atos mais simplórios são recobertos por uma aura de importância sem par, importância que parece querer justificar a incoerência das situações fantásticas. Sem resultado, já que os diálogos soam estéreis, ficando muitas vezes inconclusos, ou por iniciativa da menina, que foge, ou dos habitantes do mundo onírico, que — e isso é uma constante — desaparecem ou se negam ao discurso.
Ora, se pertencemos à sociedade enquanto portadores de linguagem, o discurso é condição de manutenção da vida, à medida que construímos o mundo através da fala. Assim, os diálogos sem sentido que Alice mantém com os estranhos seres que cruzam seu caminho são reflexos daquele desconhecido e bizarro mundo.
Muito se fala, pouco se compreende. A linguagem que deveria ser a ponte que ligaria Alice ao mundo sonhado é sempre fonte de incompreensão, isolando-a cada vez mais. Fazendo com que ela busque adaptar-se, apesar de suas tentativas sempre resultarem inúteis. Alice não entende aquela incoerência, aquela confusão. Vem de um mundo aparentemente regrado, em que é nutrida pela família, onde há espaço para cenas amorosas, quer no ato de ouvir sua irmã contando-lhe histórias, quer no carinho e dedicação à sua gatinha. Entretanto, procura ajeitar-se à ilogicidade do mundo das maravilhas, num encolhe-estica que reflete a inutilidade de suas tentativas e, ao mesmo tempo, a sua desestruturação interna. Crise existencial? Tudo indica que sim. Afinal, não é à toa que a pequena se questiona, a todo momento: — “Pois eu não sou eu mesma, como a senhora pode ver (...) eu mesma não consigo entender o que se passa”.
Alice é posta em xeque e, pode-se ver, em seu mergulho, um ritual de passagem. Menina, ela tem de deparar-se com o mundo adulto, a fim de assumir seus valores. Porém, para Alice, este mundo adulto surge como grotesco, como alheio às suas expectativas, incompreensível. Daí, a condição de exilada em que se vê e o desejo de sentir-se novamente segura no seu tranqüilo universo infantil.
Alice no País das Maravilhas, nesta perspectiva, é um livro que busca desvendar as incoerências do mundo adulto, numa construção ficcional que remete à estrutura multifacetada de um espelho caleidoscópico, que será retrabalhada de forma menos implícita, em Alice através do espelho, o novo mergulho da mesma personagem no universo onírico.

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