Minha escrita, e gosto disso, ficou bastante focada em dois públicos: crianças e adolescentes. Todavia, embora livros infantis e juvenis tenham preponderância em minha bibliografia, não abandonei os textos adultos. Por vezes, surge um poema, um conto. Ou um projeto de livro de contos, como o que desenvolvi há alguns anos e que recebeu alguns nãos editoriais. Mas agora o vento sopra a favor destas histórias escritas durante um período bem longo, que, aliás, não sei precisar. Todavia, são contos que conversam entre si: dores existenciais, descobertas nem sempre felizes, que vão dando conta do existir de homens e de mulheres, alguns ceifados da vida ainda crianças. São mergulhos na vida, através de meu olhar, que poderia ser outro, sei, porém não foi.
Gosto do gosto da dor ficcional. Gosto de ser dedo roçando na ferida viva do ser gente, gosto de coletar retalhos de imaginação que possam obrar o existir, através do fingimento que, por fingir-se, acaba por se tornar possibilidade.
Assim, abaixo, um trecho de um dos contos de "Vento sobre terra vermelha", que lanço no dia 01 de setembro, a partir das 17h, no espaço cultural 8Inverso, rua Azevedo Sodré, 245, Passo da Areia, Porto Alegre.
Tinha
muitos livros. Pouco espaço, aliás, sobrava naquela peça da casa. Uma sala
grande, duas janelas estreitas e altas, cortinas claras, uma mesa de madeira
escura no centro, uma estatueta de um velho cavaleiro armado, e livros. Muitos.
A biblioteca, assim ele a nominava. De onde vieram tantos volumes, ninguém
nunca soube ou desejou precisar. Ter assim tantos, aquela quantidade de livros,
impossível de ler tudo numa única vida, era coisa de louco ou, no mínimo, de
quem muito pouco teria para fazer. Como Arno Kunz, médico aposentado, vindo com
os pais da Alemanha ainda bebê, enrolado em cueiros. O Doutor, como era chamado
por aquelas bandas. O Doutor, o homem dos livros. Como se foi no chegado,
também não interessava. A fama se fazendo, quer pela propriedade da medicina,
quer pelo inusitado dos espaços sendo tomados pelos livros. Hoje, não andava
mais pelas fazendas e caminhos a tratar bicheiros e vermes em crianças, mas vez
que outra ainda era acordado na noite para o ajude de um ou outro vivente
querendo vir ao mundo e atravessado na barriga, assim estando, como ocorrido
com a Marcela. Mundo tão cheio, e tantos
no chegado, resmungava sua mulher, cada vez que o Doutor de posse de uma
maleta branca, com cruz vermelha encimada, saía no trote da pequena charrete.
— É a vida no continuado, Clarice, a vida no
prolongado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário