Doçuras e dores da adolescência
Beatriz Tafner, Jornal do Brasil
RIO - Meu pai não mora mais aqui destaca-se da literatura jovem em geral. Apesar da temática adolescente, o livro de Caio Riter pode ser lido por todas as idades, mesmo que os protagonistas, Letícia e Tadeu, tenham 13 anos: embora os assuntos tratados sejam o de qualquer rodinha de garotos e garotas, não seria surpreendente ouvi-los nas mesas de bar que reúnem pais e mães. Fala-se do tal sentido da vida, das pessoas partindo e, afinal, de por que elas morrem. Fala-se. Mais do que isso: pensa-se. O tempo todo. Um bocado por conta do formato escolhido pelo autor: a história se desenrola a partir de uma tarefa de aula de português, escrever um diário. Comuns, com suas dúvidas, medos e desejos, os dois heróis apresentam, cada um em um capítulo, uma anotação, aproximando o despretensioso livro juvenil da clássica rebuscada tradição do romance epistolar – aquele em que os personagens escrevem na forma de cartas, diários etc. Riter, entretanto, garante que nunca quis cair no modismo de uma literatura que ultimamente faz romances em forma de blog, cartão postal, e-mail. “Penso em uma narrativa que possa ser lida com encanto hoje, mas também amanhã. Um texto que comunique sempre”, diz. Riter é professor de língua portuguesa do ensino médio, o que talvez explique sua intimidade com o universo jovem. Nesta entrevista, o escritor, também pai de adolescentes, abusa da intensidade dessa fase, enquanto brinca com o fato de tudo ser passageiro, e decreta, diante dos conflitos que testemunha na vida e recria no papel: “Estar adolescente é estar doente” – ou seja, adolescer é adoecer.
Como você optou pelo formato de diário dos protagonistas? Houve a intensão de se inserir em uma tradição de “romance epistolar”?
Há muito vinha sentindo o desejo de produzir uma novela juvenil em forma de diário. No entanto, andava também à procura de uma história que tivesse a ver com a narrativa epistolar, visto que acredito que cada trama exija, de certa forma, uma estrutura que a sustente. Escrever em forma de diário, entretanto, poderia resultar num texto sem novidade, visto que há muitas novelas juvenis estruturadas dessa maneira. Pensei, então, no motivo que levaria Letícia, uma das protagonistas, a produzir um diário. A idéia veio de uma conversa com um garoto que me falou que sua professora havia solicitado a sua turma que produzisse diários. Achei a idéia interessante. Descobri ali o motivo para minha personagem sentir-se “obrigada” a iniciar a escrita de um diário. Dei-me conta que, se a turma fora convocada a escrever o diário, além da Letícia, seus colegas também teriam de realizar tal tarefa. Entre eles, meninos e meninas. Nasceu então a pergunta: que diferenças haveria entre um diário de uma garota e o de um garoto? E resolvi intercalar as reflexões de Letícia em seu diário com as encucações de Tadeu, seu colega de classe. Dois diários, duas vozes, dois modos de ver a vida e o adolescer. Meu pai não mora mais aqui, desta forma, insere-se numa tradição de textos epistolares de forma não intensional. Na verdade, não é a primeira vez que uso tal artifício. Em A cor das coisas findas, há momentos em que a personagem Eduarda se revela através da escrita de um diário, todavia, diferentemente de Meu pai não mora mais aqui, o narrador predominante é onisciente, em terceira pessoa.
Ao mesmo tempo, o romance epistolar também se tornou parte de um modismo “impressionista” de livros que adotam formas de outras mídias, como diários, blogs, trocas de e-mails... Era seu objetivo?
Em nenhum momento me passou pela cabeça ir ao encontro de algum modismo. Até por que os modismos passam e são superados por outros. Quando produzo um texto, penso na possibilidade de ele não ficar ligado a alguma vertente, em uma narrativa que possa ser lida com encanto hoje, mas também amanhã. Um texto que comunique sempre. Essa talvez seja a empreitada mais difícil: mergulhar na nostalgia do meu adolescer, ficcionalizando-o e estabelecendo uma ponte entre a minha experiência e a adolescência atual. Para tal, é importante conversar com a adolescência no que ela tem de perene, de eterno, ou seja, estabelecer um diálogo com o jovem atemporal. Para tal, os modismos acabam sendo limitadores. Quando surge a idéia de uma história, busco pensar qual a melhor estrutura para dar conta do tema, independentemente de modismos ou tradições. Qualquer enquadramento é papel da critica e não de quem escreve.
O livro, apesar da temática de perdas e rompimentos, é muito bem humorado...
Adolescer é assim. Estar adolescente é estar doente. E esse estado de convalescença, esse meio-termo entre infância e maturidade, é oscilante. Adolescentes são sempre inteiros em suas paixões: quando amam ou sofrem, fazem-no com total intensidade. Têm diversas facetas: entristecem-se, choram, riem, amam, odeiam, jamais são indiferentes. Seus estados de alma, assim como são intensos, são também passageiros. Sou professor e pai de adolescentes. Convivo muito com eles e gosto de observá-los, de perceber-me em seus arroubos, em suas rebeldias sem causa, em seus desejos de mudança. E isso me fascina, interessa-me como escritor, entender a adolescência, esse período febril.
Tadeu foi inspirado em um jovem que se correspondia com você por e-mail/MSN...
Conheci o Tadeu Fiorentin através de um trabalho de literatura que a escola dele, no município de Nova Bassano (RS), promoveu. A professora Marli sugeriu que seus alunos enviassem e-mails ao autor do livro que tinham lido: eu. Assim, meus primeiros contatos com o Tadeu foram virtuais: e-mails, depois MSN. E, nas conversas com o adolescente de 14, 15 anos (em 2005) que me falava de sua vida, partilhava seus sonhos, pedia conselhos, eu ia recuperando um tanto de meu tempo de adolescer. Experiência bacana em que as quase três décadas de distância não foram empecilho. Nossas conversas eram troca entre dois tempos que se encontravam, tendo como essência o gostar de livros. Num desses encontros, Tadeu, meio indignado, me contou que sua professora de português lhe dera como tarefa a confecção de um diário. Tentei aconselhar meu amigo, dizendo-lhe que seria legal escrever um diário. “Imagina, cara, daqui a alguns anos, tu poderá saber o que pensava o Tadeu-adolescente”. Não o convenci muito, mas eu, que já pensava em escrever a história de uma jovem cujos pais se separam e ela tem dificuldade em aceitar a nova situação, descobri naquela conversa que poderia estruturar meu novo livro em forma de diário. Através da escrita, a protagonista iria vencendo suas dificuldades. E descobri mais: que poderia, em vez de criar um diário, organizar o livro em forma de dois: um diário de uma garota e um de um garoto. Decidi, então, que o guri seria o Tadeu. Quer dizer, não bem o Tadeu real, mas um Tadeu criado à imagem e semelhança do verdadeiro. Aí fui “dando corda” para meu amigo, fui perguntando mais sobre sua vida, seus desejos, inclusive “colando” frases literais digitadas por ele, frases espirituosas, repletas de verdades adolescentes, e que foram para o livro de forma literal. Meu personagem foi assim se tornando nosso. Mandava fragmentos do livro e vibrava com a sua enorme empolgação ao ver-se ficcionalizado, matéria-prima de meu livro. E, como diferente não poderia ser, meu livro é dedicado a ele.
Perfil: Caio Riter
Nascido em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, Caio Riter tem 46 anos. É bacharel em comunicação social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio grande do Sul, licenciado em letras, mestre e doutor em Literatura Brasileira. O escritor é ainda professor de língua portuguesa, e ministra oficinas literárias de narrativa desde 1999. Riter tem em seu currículo obras como O rapaz que não era de LIverpool.
[19:32] - 10/10/2008
Um comentário:
Parabéns, Caio, por essa maravilhosa entrevista. Aprendi muito com tuas colocações. Além disso, seu livro Meu pai não mora mais aqui, para mim, ganha relevo com a leitura dessa sua entrevista.
Abraços
Hermes Bernardi Jr.
Escritor e Coordenador AEILIJ-RS
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