quinta-feira, 6 de março de 2008

Caio Leitor 3 - Píppi sempre dá um jeito

Entre as páginas de um livro de Astrid Lündgren, dois olhinhos curiosos, afoitos pela vida, me espiam. E são convite. Vejo pés calçados em sapatos enormes, que, num pulo, fazem com que uma menina diferente, salte, de costas, para dentro do meu coração de leitor.
Me surpreendo. Pergunto:
— Por que você caminha assim, de costas?
Ela se volta para mim, e a cara sardenta sorri.
— É que eu quero voltar pelo mesmo caminho que vim!
Lógica estranha. E, ao mesmo tempo, fascinante, a desta garota.
Cabelos vermelhos, presos em duas enormes tranças, meias listradas que lhe cobrem as pernas, um vestido azul, meio velho, um ou outro remendo. A menina ruiva me fita com interesse, sabe já que me cativou. Leio em seus olhos que ela é menina de histórias, de invenções, de alegrias. Ela, talvez leia no meu olhar o desejo de conhecê-la melhor. Estende-me a mão. Eu a seguro, e sem soltar-me, a menina de seus 9 anos, se apresenta:
— Oi, prazer. Eu sou a Píppi. Píppi Meialonga, a seu dispor.
Sorrio também. Fui com a cara dela, apesar daquele jeitinho meio maluco. Maluco, não. Diferente. Jeito de quem sabe fantasiar a vida, jeito de quem sabe encantar quem a cerca, jeito de quem inventa o próprio existir, jeito de quem adora embarcar nas asas da fantasia. Gosto da menina, e nem me surpreendo, quando ela me puxa para dentro do livro e me convida a ser seu parceiro no universo do faz-de-conta.
E eu, homem de mais de quarenta, doutor, professor, escritor, pai, e tantas outras coisas que vamos sendo na vida, quando percebo, sou companheiro da menina ruiva em suas andanças por Vila Vilekula. Depois, entramos no interior da grande árvore, e de lá, ficamos a espiar o mundo. Legal ver a vida por aquele buraquinho. Legal também sair pelas ruas e campos à procura de coisas perdidas. E, ao lado de Píppi, vale encontrar tudo, e nada: “barras de ouro, penas de avestruz, ratos mortos, caramelos, parafusinhos pequenos...Coisas assim.”
Píppi sempre dá um jeito.
E,ao lado de minha nova amiga, vou-me descobrindo também um encontrador de coisas: alegria, fantasia, prazer com a leitura, fuga da rotina, mergulho renovado na infância. Píppi me proporciona isso, e muito mais.
— Olha, diz ela, lá vem meus amigos!
Um macaco, um cavalo, um menino e uma menina. Eles chegam e em seus rostos há o muito da alegria com que Píppi, como mais ninguém, sabe contagiar. Senhor Nilson, o macaco, Aninha, a menina, Tom, o menino, e o Cavalo, que desconfio chama-se cavalo mesmo. Coisas da Píppi.
Depois me mostra sua casa: a Vila Vilekula. Pequeno casebre, caindo aos pedaços, bem na beirinha da cidade. O jardim com grama alta revela a alma “descuidada” de sua proprietária.
— Você mora sozinha aqui?
Ela ri. Parece mesmo que eu digo alguma bobagem.
— Não. É óbvio que não. Moro com o Senhor Nilson e com o Cavalo.
— Ah!, exclamo, sem saber ao certo o que dizer, pensando que, talvez, seja mesmo normal viver na companhia de animais: um macaco e de um cavalo. Deve ser. Deve ser.
Píppi me diz que seu pai é o chefe de uma tribo de canibais em uma ilha, conta que possui uma mala cheia de barras de ouro, fala até que, dia destes, uma dupla de bandidos tentou roubá-la. Onde já se viu atacarem uma pobre menina indefesa? Talvez, assim como eu, ao olhar para Píppi, os bandidos pensaram assim. Tadinha, sozinha e cheia de barras de ouro. Prato feito para gente maldosa e cobiçosa. Porém, os dois, literalmente, dançaram, conta ela. Desconheciam, por certo, que estavam diante da menina mais forte do mundo. Píppi é forte mesmo. Nesse momento, ergue o cavalo numa das mãos e Tom e Aninha na outra. E eu, ali, perplexo, diante de tanta novidade.
Mas é hora de retorno, penso. Tenho uma pequena palestra a preparar. Nela devo apresentar a Píppi. Tarefa difícil. Talvez o melhor fosse ela mesma se apresentar. Falar um pouco de si, um pouco de sua vida, de suas aventuras pelos mares ou mesmo na Vila Vilekula. Contar suas tantas histórias, as vividas e as inventadas.
Dou tiau a Píppi e a seus amigos. A vida real me chama. Assim, me vou, embora saiba que esse encontro com a menina de cabelos vermelhos ficará guardado em meu coração para sempre.
— Você vá. Mas volte, diz ela. Preciso de companhia para escalar a montanha Marachu.
— Montanha Marachu? Onde fica? – pergunto.
— E eu sei, diz ela. Vamos procurar juntos.
Rio.


Píppi, de fato, não tem jeito.
Porém, sempre dá um!

No caminho de volta, me pergunto: com que palavras eu poderia retratar essa personagem que rompeu as fronteiras do país de Astrid Lindgren, sua criadora, e passou a encantar as crianças de todos os lugares em todos os tempos?
Busco-a, assim, em suas próprias aventuras. É nelas que Píppi se revela.
Diferente, forte, extraordinária. Alguém cuja lógica é a da fantasia. Para ela, não há limite, não há medos, não há interdições. O mundo adulto se curva à Píppi. Quer quando ela se torna heroína capaz de salvar duas crianças de um terrível incêndio, quer quando participa de um chá em que o tema de debate são as empregadas, ou mesmo quando, para surpresa de todos, revela-se autônoma, visto que mora sozinha, ela mesma cuidando de si e dando ordens a si própria.
Aí, com certeza, reside o fascínio infantil por Píppi. Ela é livre, em sua vida não há proibições. E, caso haja, é a menina mesma que as impõe. Não há uma voz adulta a dizer-lhe o que deve e o que não deve fazer. Alheia às diretrizes do mundo real, a garota vive num universo quase paralelo. Nele, através de uma ótica ingênua, e que algumas vezes parece “alienada”, Píppi constrói uma nova forma de se relacionar com o mundo adulto. Ela é criança, ela é livre, totalmente aberta à fantasia, que se confunde a todo momento com a vida real.
Todavia, percebe-se na menina um grande desejo de aceitação. Desejo que, mesmo que muitas vezes não satisfeito, não a imobiliza. Ao contrário, é mola propulsora para mais e mais histórias, mais e mais aventuras, mais e mais desafios.
Bem. E essa é Píppi, com sua lógica ilógica, que encanta corações infantis e outros nem tanto. Como o meu. Mas para amar Píppi, é necessário desarmar-se, coisa que muitos adultos não sabem mais fazer. Que pena!
E se você quiser conhecer Píppi como eu conheci, mergulhe nas páginas de Píppi Meialonga, de Astrid Lündgren.



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